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Protestantismo colonial e o racismo nos EUA

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As duas últimas semanas nos EUA representa muito bem o que vem sendo a histórica questão racial no país e, principalmente, nos últimos três anos. Sobretudo após os acontecimentos em Charlottesville, cidade localizada na Virginia. Somente essa informação pode parecer vaga aos desavisados, não acha? Mas o estado da Virginia é um dos estados que fez parte dos Confederados na Guerra Civil Americana e lutou a favor da manutenção da escravidão e que, ainda hoje, guarda monumentos que enaltece o racismo e a defesa da escravidão.  Para aflorar ainda mais a questão, quando ocorreram os protestos nessa cidade pelo fim dessas monumentos, reapareceu a Ku Klux Klan. O que causou ainda mais perplexidade em pleno século XXI. O racismo dos estado-unidenses possui história e ela não é recente.

Quando estudamos a história do país em questão, somos seduzidos por uma história econômica que enaltece o espírito empreendedor do povo americano desde suas raízes. Um povo voltado para o trabalho, que busca o sucesso, que cria suas oportunidades e que prospera com o seu suor. Uma história tão fatalista e determinista que realmente parece que eles já estavam marcados para vencer. Quem nunca ouviu falar em: América! Terra das oportunidades! Ou: Conheço uma história de um cara que foi pra lá e ficou rico! Não falta relatos né? Mas o que está travestido nisso tudo é uma história de genocídio indígena, racismo e degradação daquele que não era branco. Para o branco se desenvolver, não podia ter espaço para o indígena, pois ele representa o selvagem e sem cultura. Um nada perto da superioridade branca formada por imigrantes ingleses, escoceses, franceses, alemães e holandeses.  O próprio feriado de Ações de Graça é interessante de ser mencionado. Os ingleses chegaram e diante de uma dificuldade de se estabelecer nas novas terras foram agraciados pelos ínios com comida e acolhimento, além de conhecimento para poderem sobreviver. Após adquirido esses conhecimentos,  ocorreu uma matança generalizada dos indígenas seguido de tomada de seus territórios até o século XIX, isso desde o século XVII. E isso se tornou um feriado cívico.

Já parou para se perguntar como um país que se orgulha de ser fundado e manter tradições protestantes, comemora Dia das bruxas? Essa data comemorativa na tradição dos EUA faz parte de uma tradição pagã saxônica. Ué! Se tem espaço para uma tradição cultural pagã como essa, aonde estão as tradições africanas na cultura americana? Aqui reside uma questão pertinente, pois as tradições africanas recebiam a denominação de demoníacas. Por isso deveriam ser extirpadas. O Evangelho que  prega a união e o congraçamento, serviu para desunião e subordinação do negro. Igrejas, bairros, escolas e  hospitais para negros. Segregação total. Igrejas só para negros é demais! Mas quando isso passou a ser bem visto? Aqueles corais compostos por negros cantando brilhantemente, o Jazz e o Blues… passaram a ser bem vistos por causa da aceitação comercial e a lucratividade que isso despertou. Não era uma questão de aceitação, mas sim de consumo. Enquanto isso, os negros, mesmo no século XX e XXI, continuam sendo alvos de violência física e psicológica. Não é sem motivos que jovens negros se negavam a lutar no Vietnã, devido a não serem vistos como cidadão americano de fato. Sendo assim, pra que levar um tiro pela nação?

Vamos regressar mais uma vez no tempo. A escravidão negra nos EUA começou a ser utilizada já no século XVII, mas ela não era predominante. Ela passou a ser predominante no século XVIII quando a lavoura do tabaco e principalmente do algodão cresceram e careceram demais de mão de obra. Na parte Norte da colonização, predominou a mão de obra familiar em seus minifúndios. De modo geral, os primeiros a ingressarem no projeto colonizador eram pessoas fugindo da perseguição política e religiosa na Inglaterra. Com um sistema de servidão temporária. Ou seja, O indivíduo ia para a colônia e trabalhava temporariamente para pagar a viagem. Feito isso, estaria livre do seu compromisso e poderia até se tornar um proprietário, por causa da disponibilidade. Esse mesmo esquema vigorou no Sul, entretanto, esse sistema não vigorou por muito tempo. O Sul baseado no latifúndio demandava muito de mão de obra e a dificuldade de obter terras no Sul fazia com que a escolha pelo Norte fosse maior. O correu a tentativa de estabelecer o trabalho forçado para quem estava cumprindo penas na Inglaterra, de acordo com Weber em seu livro, A ética protestante e o espírito do capitalismo. Essas pessoas eram enviadas para a colônia. Mas ainda não era o suficiente. Daí que ocorreu a intensificação da escravidão negra. Tanto é que a atual Wall Street era um importante mercado de escravos.

Mas e o protestantismo? Flertou com o racismo? Nas colônias ibéricas na América temos noção de como foi. Mas e na colônia protestante da Inglaterra? Nesse ponto, não ocorreu qualquer diferença. Protestantismo não só flertou como legitimou a escravidão e o racismo. Um bispo protestante fez esse sermão direcionado aos escravos:

“Havendo mostrado quais os principais deveres para com o nosso
grande mestre no céu, agora Ihes exporei quais os deveres para com os
senhores e senhoras que vocês têm na terra. E para isto há uma única
regra geral que devem levar sempre com vocês: e que é servi-Ios em
tudo como se estivessem servindo ao próprio Deus […] Os erros que
vocês cometem contra seus patrões e patroas são erros que vocês
cometem contra o próprio Deus, que Ihes envia essas pessoas para
representá-Io […] Os patrões e patroas são capatazes de Deus, e, se
vocês cometem faltas contra eles, Deus os punirá severamente no
outro mundo.” (ADAS, Melhen. Geografia da América: aspectos físicos e sociais. São Paulo: Moderna, 1982)

Sendo assim, a colonização não é meramente a exploração econômica e política. Mas também e, principalmente, psicológica, com a anulação do eu e com a aculturação. A negação do eu foi fazer com que o negro se entendesse como um nada, que não adiantaria lutar e aceitar sua vida. A aculturação era a negação de suas tradições e ter que falar e seguir a religião do seu senhor. No campo jurídico, o escravo tinha o mesmo direito que uma cadeira. Ou seja, um objeto não tem direitos.

O discurso da “eleição divina”, princípio da predestinação calvinista fortaleceu ainda mais a secção entre os membros da sociedade colonial e estado-unidense, já independente. O eleito é o branco calvinista e quem não é… não poderá herdar a Nova Jerusalém. Terreno mais que fértil para o racismo e a violência física. Onde há sobrevalorização racial, há racismo. A partir da Revolução Americana, a Liberdade, como pedra angular da nova sociedade foi estabelecida. Mas a Liberdade iluminista não deu fim ao sistema escravista. A Liberdade e cidadania era só para homens brancos.

Já reparou que na história da abolição da escravidão nos EUA, para quem não é do país, não tem contato com nomes e personagens importantes que lutaram contra a escravidão? Digo na questão racial mesmo. Não conhecemos em nossas escolas pessoas negras que lutaram contra a escravidão. Parece que Lincoln foi o único responsável pelo fim dela em 1863.  A abolição que seria uma inserção social do negro, não foi bem assim. Embora fosse uma ascensão social, pois ser livre era subir de nível, continuaram na base da pirâmide por conta do racismo e a visão de inferioridade destinada a eles. A liberdade era física, mas não ética e psíquica. Os negros continuaram segregados como falamos acima de forma descarada até o fim dos anos 1960. Para além da segregação geográfica, começou a ocorrer a negrofobia que eram ações de linchamentos que cresciam assustadoramente. A libertação do negro seguido de direitos políticos, mas não de direitos civis, estimulou ainda  mais a insatisfação dos sulistas ao ponto de criar uma organização para perseguir e praticar homicídios aos negros, ainda no século XIX, a Klan, já citada anteriormente. A Klan é uma sociedade civil formada por supremacistas brancos e que possuem um discuso cristão dos tempos da escravidão.

A conquista da liberdade pelos haitianos é um fato heroico em nossa história continental. Lá a abolição da escravidão deu-se por uma conquista negra e foi seguida da independência do seu pais, da dominação francesa. Isso possibilitou que os negros haitianos tivessem acesso à terra. Esse fato gerou um estado de alerta em toda a América, principalmente no Brasil e nos EUA, os dois países mais escravista do continente. Dessa forma, a elite americana colocou em prática o “código negro” o que possibilitou limitar a participação negra na política, ao acesso à terra e as liberdades do negro. Ainda assim, os negros começaram a protagonizar vitórias nas eleições, o que alavancou ainda mais as atuações da Klan.

Convivendo com questões racistas legitimada pelo protestantismo, o século XIX e parte do XX lançou o racismo científico baseado no darwinismo social e a eugenia (sugiro ler um texto meu de fevereiro só sobre o tema). A antropometria, um traço da pseudociência eugênica dizia que os traços do negro, como o tamanho do crânio, era de quem era voltado para o crime e a maldade. Sem qualquer justificativa científica, mas sim determinista, essa ideia legitimou ainda mais a violência e os homicídios para a pureza da raça. Quem defendia os interesses dos afro-americanos também eram alvos de violência. A 13ª Emenda, que aboliu os trabalhos forçados e a escravidão, abriu brecha para a manutenção do racismo. Como assim? O trabalho forçado mediante a punição para quem estiver privado da sua liberdade, ou seja, no sistema prisional. Qualquer filme americano, principalmente sulista, mostra uma demografia prisional majoritária de negros e latinos. Muitos crimes foram revistos e perceberam erros nas conduções de processos, penas para negros que cometem o mesmo delito que um branco é maior e inocentes injustiçados. O caso Floyd não reacende essas questões, mas ela escancara. Os policiais brancos que cometem crimes contra negros ou não são indiciados ou são absolvidos em tribunais com juris brancos. O Sul dos EUA não pode ser visto como terra da Liberdade, pois, um local em que o tratamento de uma pessoa é pautado na sua cor, não há Liberdade e muito menos igualdade jurídica, como prevê o princípio iluminista constitucional.

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